O Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), a organização internacional de combate à pobreza ActionAid e a Articulação Rosalino Gomes de Povos e Comunidades Tradicionais, do Norte de Minas Gerais, vêm a público condenar a atitude da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e da Frente Parlamentar de Agricultura (FPA) no Congresso Nacional, que enviaram ofício ao presidente da República, Michel Temer, no último dia 14, pedindo revogação do decreto 6.040/07, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais, conforme informou o jornal “Folha de São Paulo”, em reportagem publicada no último sábado. O pedido teria sido feito em função de conflitos que estão em curso no Norte de Minas Gerais, em função de processos de regularização fundiária, previstos na política. As organizações veem a solicitação enviada ao presidente como grave ameaça aos direitos de povos e comunidades tradicionais (PCTs), que já têm vivido um processo de acirramento de violações, o que se expressa com maior obviedade pelo aumento dos conflitos rurais envolvendo representantes dessas populações em todo o país.
Os PCTs somam aproximadamente cinco milhões de brasileiros, que ocupam um quarto do território nacional, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Eles são considerados os guardiões da biodiversidade brasileira, uma vez que seus modos de vida se dão em equilíbrio com a preservação dos recursos naturais. De acordo com o Serviço Florestal Brasileiro, de 75% a 79% da área registrada por todas as comunidades do país está coberta de vegetação nativa, muito acima do requerido por lei. Além disso, os PCTs expressam a diversidade cultural e identitária que marcam a conformação da sociedade brasileira. No início de julho de 2018, ActionAid e Articulação Rosalino Gomes participaram do “I Seminário Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais Protagonistas da sua História”, que foi sediado pelo MIQCB, em quilombo localizado na região central do Maranhão. Na ocasião, cerca de 200 pessoas se reuniram por três dias, exatamente para avaliar a política nacional e cobrar das autoridades a implementação de pontos nos quais ainda falta avançar.
“Vivemos em tempos estranhos, em que aquele que deveria proteger é o que mais viola. Viola nossos direitos de consulta, viola nossos direitos territoriais, vende nossos territórios a grandes empreendimentos, incita o medo aos nossos dentro dos nossos territórios, divide nossas comunidades, parcela nossos territórios, nos traz projetos de infraestrutura que não dialogam com nossa cultura, nossa tradição. Vamos resistir, lutar e pressionar o Estado, que não pode ceder a esse pedido absurdo que incentiva o extermínio dos povos e comunidades tradicionais”, diz Maria de Jesus Bringelo, conhecida como Dona Dijé, coordenadora do MIQCB e integrante do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, destacando alguns dos pontos de ameaças em curso mais importantes que surgiram durante o evento.
Geraizeiro – uma das identidades tradicionais do Norte de Minas -, integrante da articulação Rosalino Gomes – que reúne PCTs da região – e do movimento geraizeiro, Samuel Leite Caetano, afirma:
“É com profunda indignação que recebemos a notícia deste ofício e sabemos que a revisão do decreto 6.040/07 trará enormes retrocessos aos povos e comunidades tradicionais do Brasil, de forma geral. Nossos territórios sagrados estão sendo expropriados pelos grandes projetos do agronegócio. A revogação da política não pode acontecer de forma alguma, pois representa a licença do Estado brasileiro para acontecer um massacre contra todos os PCTs do país. Sem nossos territórios, deixamos de existir. Nossa relação com os ambientes que ocupamos é diferente, pois existe uma harmonia no uso dos recursos naturais. O pedido de revogação representa uma ameaça à biodiversidade brasileira. Cientes disso, nós, PCTs do Norte de Minas, não aceitamos esse pedido, por compreender que ele causará retrocessos imensuráveis a nossos direitos. Que o Estado brasileiro não cometa esta insanidade”.
A solicitação feita pela CNA e a FPA a Temer busca por fim a um processo de reconhecimento da importância dos PCTs para a história, a sociedade e o meio ambiente brasileiros, na opinião da assessora de Programas e Políticas da ActionAid no Brasil, Jéssica Barbosa:
“O pedido de revogação representa um ataque explícito ao processo de construção e articulação que os povos e comunidades tradicionais vêm construindo nos últimos anos no Brasil. É evidente que essas populações sofrem ataques e perdas há mais de 500 anos, e a política que é resultado do decreto 6.040 é uma enorme conquista histórica para elas. É importante ressaltar ainda que esses povos e comunidades estão na fronteira dos principais biomas do país, e os seus modos de vida, mantidos e preservados, são essenciais para a manutenção da nossa biodiversidade. Eles convivem e coexistem com o meio ambiente, mantendo muitos desses biomas de pé”.
Jéssica destaca ainda o impacto que a revogação teria especialmente para as mulheres de identidades tradicionais:
“As mulheres são as principais responsáveis pela manutenção desses modos de vida, pela resistência e o cuidado das famílias nos territórios. Muitas delas já estão ameaçadas por diversos conflitos de terra e disputas por recursos naturais nas comunidades. É o caso das quebradeiras de coco babaçu. As mulheres serão as mais atacadas e prejudicadas, caso o decreto seja revogado. Obviamente, vemos isso com bastante preocupação”.
A Articulação Rosalino Gomes faz parte do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, organização parceira da ActionAid em projetos de desenvolvimento e fortalecimento dos direitos de povos e comunidades tradicionais da região, desde 2006. A organização também atua junto ao MIQCB, movimento que se espalha pelos estados de Piauí, Maranhão, Piauí e Tocantins, e representa cerca de 300 mil mulheres que vivem da coleta e beneficiamento do coco babaçu, e lutam pelo acesso livre ao território e a preservação dos babaçuais. A atuação em locais diferentes do país se unifica e alinha na defesa pelos instrumentos legais que garantam a conquista de direitos e a preservação dos modos de vida dos PCTs do país. A participação no “I Seminário Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais Protagonistas da sua História” é um exemplo deste trabalho em unidade.
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