O Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) esteve no Seminário de Regularização Fundiária de Territórios Tradicionais da região Norte, organizado e promovido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e Ministério de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) com o apoio do Conselho nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT).
As mulheres das Regionais Pará e Tocantins do MIQCB participaram das discussões ao longo de quatro dias, entre 25 e 28 de novembro, que envolveram as questões específicas e territoriais de povos e comunidades tradicionais da região norte do país.
“Não dá para discutir as questões de terra e território de maneira unânime e uniforme porque cada segmento tem sua cultura, seu modo de vida e suas especificidades que se relacionam com determinado bioma, na sua localidade”, como apontou a coordenadora-Geral de Identificação e Mapeamento de Quilombos e Povos e Comunidades Tradicionais e Proteção Territorial, Isabela Cruz, para explicar o motivo da realização do Seminário em cada região do Brasil.
A mesa de abertura foi provocada por ter sido composta apenas por homens, o que fez duas conselheiras do CNPCT serem convidadas a compor. A conselheira que representa os povos de quilombos, Makota Kidoialê, utilizou seu momento de fala para tecer crítica, a plateia aplaudiu em resposta. “Nós somos a maioria neste auditório, fico feliz que não tenhamos permitido que continuasse sem a representatividade feminina, mas não podemos deixar que isso continue a acontecer”.
A presença das mulheres nesse processo é muito importante. Segundo os dados do Censo Demográfico de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), elas compõem 51,5% da população no país. Outra pesquisa, financiada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), estima que quase a metade das brasileiras são mães. Dentre aquelas que possui ao menos um filho ou filha o registro é de que 61% delas sejam de mães solo.
Os dados das pesquisas se aplicam entre as quebradeiras. Majoritariamente, as mães que vivem do extrativismo do babaçu chefiam a própria casa, garantindo renda para criar os filhos. A probabilidade é de que essa realidade esteja presente também em outros segmentos de comunidades tradicionais.
Neste sentido, a presença das mulheres nos espaços de decisões se faz necessário. O primeiro Seminário Regional, que aconteceu em São Luiz do Maranhão para discutir as questões sobre a regularização fundiária de territórios tradicionais com representantes das comunidades tradicionais do Nordeste foi liderado pelo MIQCB, e essa atuação foi lembrada e elogiada na edição Norte do mesmo evento.
Esse protagonismo foi reconhecido pelo presidente do CNPCT, Samuel Caetano, quando declarou, na mesa de abertura, que “as quebradeiras de coco demonstraram alta capacidade organizativa, comunicativa e de mobilização”. Cada região do Brasil terá um seminário, o primeiro aconteceu em São Luís e já pontua em prestígio.
Roberto Araújo Santos, que é Antropólogo do Museu Goeldi, local onde aconteceu o Seminário em Belém, ainda ressaltou que as quebradeiras demonstram esta maestria desde o tratamento com o meio ambiente, por meio da palmeira. “O controle sobre a tecnologia tradicional na quebra do coco e na produção dos derivados do babaçu é conduzido pelo extrativismo, assim elas combatem a devastação das vegetações nativas. Sem dúvidas, é uma relação de sucesso!”.
Para finalizar o momento de abertura e abrir as discussões do evento, o verso de Nego Bispo foi recitado por Isabela Cruz: “mesmo queimando o nosso povo, não queimarão a nossa ancestralidade”. O dispositivo de honras foi desfeito em silêncio, em respeito às vítimas de acidente que estavam à caminho do Parque Memorial na Serra da Barriga.
O papel não fala o que se vive na prática
A primeira discussão tratou de explicar sobre as novas ferramentas de Regularização Fundiária, como o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRUs) em Florestas Públicas e as retomadas dos produtos parciais da consultoria jurídica realizada pelo Governo Federal. Para além dos dispositivos legais, muitos posicionamentos das entidades presentes surgiram.
As lideranças se levantaram do público para oferecer a sua perspectiva, um ponto vista sobre a realidade que os legalistas e a Lei não possuem. Atanagildo Matos, mais conhecido como Gatão, coordenador Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) do Pará, expôs sua experiência de vida como contra-argumento às regras dos dispositivos legais apresentados.
“Políticas Públicas não caem do céu. Se propõe, constrói e negocia. Eu nasci conhecendo os animais, as plantas, a floresta. Ninguém me levou para lá, eu nasci lá. Nós não queríamos terras como um tabuleiro de damas, nós construímos a garantia da terra coletiva para quem vive de forma coletiva”, bradou Gatão.
O pensamento estatal tem sido descolado da realidade há décadas. Primeiro, não reconhecia o modo de vida dos povos originários. Os indígenas tiveram que se envolver no processo de construção da Constituição de 1988 para ver seus direitos escritos, ainda que já reconhecidos desde a Constituição de 1934, mas ainda hoje lutam pela garantia desses direitos.
Depois, com os povos de matriz africana, remanescentes e descendentes de pessoas escravizadas. Apesar de reconhecer esse direito na Constituição de 1988, a regularização de territórios quilombolas só foi efetivado em 2003, com o decreto presidencial que institui a formalização desta política pública.
Quando se parte para os direitos dos povos e comunidades tradicionais os avanços andam em passos ainda mais lentos. Os motivos são muitos: “cada território tem suas especificidades”, “cada comunidade enxerga a regularização de maneira única”, “as pessoas ainda não entendem o valor social da terra”, etc…
O fato é que construir de forma coletiva não é rápido. É preciso considerar todos os parâmetros. A criação da Câmara Técnica de Destinação de Florestas Públicas é uma conquista importante. Agora, a pressa para efetivar a concessão ainda nesse governo é uma preocupação real, afinal, a gestão anterior desativou, inclusive, a atuação do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais que tanto contribui para esta discussão.
Lançamento da Plataforma de Territórios Tradicionais
A equipe do MDA e do MMA iniciaram o segundo dia de seminário com demonstração dos avanços, impactos e potencialidade na Amazônia Legal com as novas normativas para Florestas Públicas, Territórios Tradicionais e Territórios da Floresta. Esse foi o pontapé para o Lançamento da Plataforma de Territórios Tradicionais (PTT), que veio logo na sequência.
A Plataforma foi criada pelos Povos e Comunidades Tradicionais por meio da articulação da Rede e Conselho desses articuladores. “A ideia nasceu da necessidade de reunir informações dos territórios com protagonismo da nossa gente. Nossa, feita por nós e para nós”, como indicou Ana Paula Santos, que é membro do Conselho Gestor da Plataforma.
O vídeo de apresentação contou a história por trás da ideia e homenageou dona Dijé como precursora da Plataforma. “Meu desejo era que a gente pudesse ter um lugar que nós contássemos quem somos nós, onde estamos e quais desafios enfrentamos”, disse a saudosa companheira que abriu vereda para este sonho realizar. A plataforma já possui mais de 300 territórios cadastrados.
Outra plataforma digital que contribui para o alicerçamento de dados que pode servir de subsídio em decisões judiciais, é o Tô no Mapa. A novidade é que o cadastro pode ser enviado automaticamente para a Plataforma de Territórios Tradicionais. “O Tô no Mapa tem um aplicativo, o que torna mais democrático o acesso dos povos e comunidades tradicionais.”, explicou André de Moraes, assessor técnico do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).
Segundo André, “já que essas pessoas não estão contempladas pelos mapas tradicionais decidimos, então, fazer nossos próprios mapas”. Isso porque tanto o Brasil, como os estados federados e os municípios, não indicam a existência dessas comunidades em seus mapas oficiais.
Ambas as plataformas são autodeclaratórias de dados georreferenciados. A diferença é que o aplicativo Tô no Mapa está diretamente ligado ao reconhecimento da localidade. Já a Plataforma de Territórios Tradicionais engloba outros elementos na composição de seus dados como, por exemplo, informações socioeconômicas, história, reivindicações e espaço para denúncias. A PTT está ligada ao Ministério Público Federal (MPF), isso fortalece a veracidade das informações além de prestar papel jurídico em prol das comunidades cadastradas.
O lançamento da PTT é simbólico: uma construção que levou anos para ser implementada partiu das próprias lideranças que enxergaram o que as instituições públicas não conseguiam ver, tal a distância entre Poder Público e comunidades. “Com certeza esta é mais uma vitória para nós”, simplificou a quebradeira de coco Elena Gomes Amorim.
O CNPCT é composto por 28 segmentos, fora aqueles que ainda estão em fase de inclusão. A previsão é de que no próximo ano sejam 31 cadeiras representativas. Cada segmento representa outras dezenas de entidades, que por sua vez atua em milhares de territórios trabalhando para alcançar e atender milhões de pessoas.
Ednalva Ribeiro, vice coordenadora do MIQCB, alerta que as ferramentas são meios de assegurar os direitos das pessoas que vivem nos moldes tradicionais e se relaciona com a terra de forma coletiva e extrativista, mas é preciso regularizar o território para garantir que a Floresta permaneça de pé.
“Nós temos o olhar do cuidado, da sobrevivência e da relação respeitosa com o meio ambiente. Nós enfrentamos muitas adversidades, mas a pior delas é a intervenção de quem destrói. Somente com a regularização e o respeito às leis que protegem, conservam e preservam é que vamos conseguir acessar o direito à terra de forma integral”, declarou Ednalva.
É por isso que as entidades representativas defendem a destinação das terras públicas aos povos e comunidades tradicionais, com consolidação da gestão territorial pelos próprios PCTs.
Como o representante do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) Breno Zúnica simplificou, “o modo de vida tradicional impediu e impede o avanço do capitalismo, da especulação imobiliária e da economia da destruição. Pensar em mecanismos de garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais é o caminho para a gestão ambiental”.
Por fim, a representante da Câmara Técnica de Destinação do MDA Caroline Araujo Freitas explicou como funciona os estudos que antecede a designação da terra pública federal aos povos e comunidades tradicionais.
Trabalho em Grupo e deliberações
O terceiro dia de atividade foi reservado aos Trabalhos em Grupo. Os participantes foram divididos para pensar em estratégias específicas para a atuação do MMA e do MDA em relação à Regularização Fundiária dos Territórios Tradicionais. Os temas delimitados foram propostos e cada participante pode escolher em qual grupo gostaria de contribuir.
Porém, o destaque deste dia foi a publicação da Resolução nº 16, de 26 de novembro de 2024, que “aprova a destinação de terras públicas federais ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), ao Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e ao Serviço Florestal Brasileiro (SFB), para fins de criação e ampliação de unidades de conservação da natureza, de regularização do uso e da ocupação de povos e comunidades tradicionais em áreas de florestas públicas federais e de concessão florestal”.
Com essa publicação, a regularização de milhares comunidades será possível com maior agilidade e garantia do acesso à terra que tanto sonham os povos e comunidades tradicionais. Uma das comunidades que será regularizada é Vila Nova dos Martírios, em Cidelândia. Uma das maiores lideranças do MIQCB, Raimunda Nonata, que também é diretora da Cooperativa Interestadual das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu (CIMQCB), reside nessa comunidade há mais de três décadas.
O dia terminou com a apresentação do resultado de todas as discussões feitas nos grupos focais e com o encerramento do Seminário. A coordenadora executiva do MIQCB Regional Pará, Cledeneuza Bizerra, emocionou o público com suas palavras de sabedoria e empolgação.
“Nós não somos nem melhores nem piores do que ninguém. Podemos dialogar com quem quer que seja, pois conhecemos nossa realidade muito mais do que qualquer autoridade. Até mesmo o juiz, que pode ter o nome acima do nosso na Lei, mas o respeito é para todo mundo”, finalizou Cledeneuza.
Oficina do IBGE
Os participantes puderam participar de uma oficina promovida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) após a conclusão do Seminário. Uma parceria com os Ministérios e CNPCT que propôs pautas voltadas aos povos e comunidades tradicionais como o que é o Censo Agropecuário, Florestal e Aquícola.
Ficou deliberado, então, que os PCTs fossem incluídos no planejamento deste senso para o próximo ano, assim seriam adequadamente retratados pelas pesquisas do Instituto. Desta forma, as comunidades e povos tradicionais estariam adequadamente instruídos a participarem da construção de uma metodologia que atenda aos critérios específicos de cada segmento.
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